É engraçado pensar nas cartas antigas.
E talvez seja ainda mais engraçado guarda-las e lê-las mais tarde, ou talvez seja triste…
Depende das cartas, depende de para quem as escrevemos…depende sempre de algo, só ainda não sei se depende mais de nós ou de tudo o resto.
As reflexões baratas ficarão para mais tarde, quando o vinho começar a aquecer os corpos. Ficam para ocupar o espaço que um dia fora preenchido por alguém, que nos aquecia o corpo em vez do vinho…para os tempos em que não eram precisas cartas para ocupar os tempos que antes não acabavam nunca, até que acabaram de vez.
Encho mais um copo com o néctar…acho que este me aquece mais do que qualquer corpo.
Ocupei o meu tempo com cartas e mais cartas e copos e mais copos, garrafas vazias…Entrei em decadência profunda. Quem dera que a cena tivesse um ar mais poético, com rosas e cheiros perfumados, mas é só mesmo o meu corpo recostado na cadeira, com o copo meio vazio na mão e a ponta do cigarro quase a queimar-me os dedos. Cheiro a tabaco e a vinho, numa sala com requintes ingleses, até podia ter o seu charme.
Desisto, a cabeça pesa demais! Ainda gostava de saber como é que o álcool consegue pesar na cabeça. Ele sempre me disse: “Não é o álcool que te pesa, são os teus problemas!” A mania da racionalidade é que me irritava, a sério. Era incapaz de perder o controlo e eu que o perdia tantas vezes… Era bom, esquecia o mundo em geral e soltava-me ao vento. “É bom voar com o vento sabes? É óbvio que não sabes, esquece!”
A merda é que ele esquecia mesmo. E nunca sentia a brisa no rosto.
Bem, eu agora já só sinto as tempestades, e porra, que a chuva dói mesmo quando cai.
Há pouco, enquanto eu estava na rua, no meio de mais uma tempestade, apareceu o outro, em forma de abrigo. Foi simpático. Acredita que falamos horas. Melhor, ele ouvia e não esquecia nada, foi tão bom. Mas ele não sabe bem para o que anda…eu também não. Não o consigo julgar, nem posso…
O corpo está mesmo quente... é bom, pior é se é febre. Sim, nestas alturas tendo a ficar hipocondríaca. Não deve ser febre, é do vinho…
Levanto-me em direcção ao espelho.
Tenho os lábios rosados, sorrio e penso “É do vinho”, acendo outro cigarro, vou para a janela e fico a sentir a chuva no rosto…
Não sei, de alguma forma masoquista, eu gosto disto.